Ali Jimale Ahmed – Espíritos atmosféricos (poema)

O somaliano Ali Jimale Ahmed (em Somali: Cali Jimaale Axmed) é poeta, ensaísta, contista e professor universitário. Atualmente leciona Literatura Comparada no no Queens College e na City University of New York.

O poema abaixo foi publicado na revista digital Warscapes e é aqui livremente traduzido por Sandro Brincher.

Espíritos atmosféricos

Na minha terra natal, os mortos,
De suas covas,
Ainda exigem vingança.
Os hospedeiros dos mortos

São os mortos-vivos,
Que seguem atravesando dois mundos.
Podem os restos secos de uma ideia submersa

Reformar um conto mutilado pelo tempo
E reduzido a cinzas?

Deixem as brasas contar nossa história.

Atmospheric Spirits (for Nuruddin Farah)

In my hometown, the dead
Still exact revenge
From the grave.
The receptacles of the dead

Are the living dead
Who already straddle
Two worlds.
Do the parched remains of a scuttled idea

Refurbish a tale mangled by time
And reduced to ashes?

Let cinders tell our story.

Romance de Agualusa fora de mais uma final

Pois aqueles que apostavam no angolano José Eduardo Agualusa para levar mais uma vez o Prêmio Independente de Ficção Estrangeira 2009, patrocinado pelo Conselho de Artes Britânico, erraram.
Agualusa, que já havia sido agraciado com tal honraria em 2007 com a tradução de “O vendedor de passados” (The Book of Chameleons, na tradução de Daniel Hahn), não teve seu romance “As mulheres do meu pai“entre as seis obras finalistas do prêmio, que distingue a melhor tradução para língua inglesa e galardoa ambos, o tradutor e o escritor, com 10 mil libras (perto de 11 mil e poucos euros).

Eis os finalistas:

  • Voiceover“, da francesa Céline Curiol
  • Beijing Coma“, da chinesa exilada Ma Jian
  • The Siege“, do também exilado albanês Ismail Kadaré¹
  • The Armies“, do colombiano Evelio Rosero
  • The Informers“, do também colombiano Juan Gabriel Vasquez
  • Friendly Fire“, do israelense A. B. Yehoshua.

¹ O mesmo de Abril Despedaçado, que recebeu uma belíssima adaptação cinematográfica aqui no Brasil em 2001, dirigida por Walter Salles.

O "racismo científico" de Louis Agassiz

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Jean Louis Rodolphe Agassiz (1807, Suíça – 1873, EUA).
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Predominou em todo o mundo ocidental durante o século XIX uma doutrina que se pretendia científica, cuja base era a idéia de que existem diferentes hierarquias dentre as principais “raças” da humanidade. Logicamente, a idéia subjacente era a de promover a raça ariana como a mais bem desenvolvida, mais inteligente e, portanto, a mais apta a governar os povos de outras raças. Os africanos, por exemplo, seriam considerados fortes, lascivos, obstinados, mas incapazes de lidar com situações complexas e que exigissem habilidades lógicas, exclusivas dos arianos. Tal teoria, cujo pioneiro foi Arthur de Gobineau, foi tão difundida que chegou mesmo a influenciar autores brasileiros como Sílvio Romero, um dos grandes nomes da historiografia literária brasileira.
Zoólogo e geólogo suíço radicado nos EUA, Louis Agassiz esteve no Brasil em expedição científica entre 1865 e 1866, dedicando-se sobretudo à Amazônia. A exemplo de Gobineau, criticava a mistura étnica, atribuindo-lhe alguns dos “males” da formação social e cultural brasileira. A Amazônia foi para ele como um laboratório de estudos sobre a mestiçagem brasileira e ajudou a fortalecer, no campo político, a segregação dos negros promovida então pela elite norte-americana.

Transcrevo abaixo um excerto de sua Viagem ao Brasil, traduzido por mim. O texto entre colchetes é inserção minha:

(p. 128)
29 de julho. Deixando Maceió. Na tarde passada, finda a chuva e com o luar a tentar a todos a bordo, tivemos uma longa conversa com nosso agradável companheiro de viagem, Sr. Sinimbu, senador da província das Alagoas, sobre aspectos da escravidão no Brasil. Parece que temos algo a aprender aqui sobre nossas próprias perplexidades com respeito à posição que a raça negra ocupa entre nós, já que os brasileiros tentam gradualmente alguns experimentos que entre nós são forçados sem nenhum aviso. A ausência de qualquer restrição sobre os negros livres, o fato de que eles são aptos ao trabalho e de que todas as carreiras profissionais estão abertas a eles, sem preconceito no âmbito da cor, permitem-nos formar alguma opinião quanto às suas habilidades de desenvolvimento. O Sr. Sinimbu nos diz que os resultados apontam em seu favor; ele diz que os negros livres são perfeitamente comparáveis aos brasileiros e portugueses em inteligência e produtividade. Contudo, é preciso lembrar, comparando-se a situação com a de nosso país, que aqui eles [os negros] foram colocados em contato com raças menos poderosas e enérgicas que a Anglo-Saxã”.

Caso ainda haja dúvidas, o que ele está dizendo no final é: “tão colocando os negros em pé de igualdade com os portugas, que não chegam a ser brancos que nem nós, os ingleses”…

Referências
AGASSIZ, Louis. A journey in Brazil. Boston: Ticknor and Fields, 1868.

Elean Thomas "Canção de amor de uma negra"

Dia desses eu tava conferindo a minha comunidade Poesia Africana no Orkut e uma moça perguntou sobre um certo poema que ela havia lido em um livro chamado Alfabetização cultural, que foi escrito por um grande amigo [o Dan Baron]. O poema original é em Inglês e a tradução foi feita pelo Dan especialmente para o livro em questão. É de uma poeta jamaicana, Elean Thomas, que casualmente faleceu uma semana antes dessa moça me perguntar sobre o tal poema. Não é africana, apesar de que Josue Yrion não sabe disso, mas indiretamente tem tudo a ver com a concepção deste blog: uma voz feminina, pós-colonial e diaspórica. Fora isso, é um poema que eu raramente consigo ler sem deixar escapar uma lagrimazinha de canto de olho. Mas sem deixar ninguém ver, lógico…
Ei-lo.

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Elean Thomas (1947-2007); Jamaica.
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Canção de amor de uma negra
[Black Woman’s Love Song]

Eu te cantei canções de amor
enquanto eles nos jogaram
juntos
entre as baratas e os ratos
no porão do navio negreiro.

Eu te cantei canções de amor
quando naquele buraco fétido
eu te ajudei a ficar vivo
para enfrentar a luta no novo mundo.

Eu te cantei canções de amor
quando eles nos colocaram
à venda no leilão
e te levaram para o leste
me arrastando para o norte.

Eu te cantei canções de amor
entre os meus gritos
de dor
te implorando
Por favor nunca te esqueças de mim.

Eu te cantei canções de amor
quando eles me levaram
para ser sua concubina
e te levaram
para ser seu garanhão.

Eu te cantei canções de amor
até quando eu deixei
de ser a concubina deles
mas não pudeste deixar de ser
seu garanhão.

Eu te cantei canções de amor
quando a backra-massa ¹
nos jogou pra fora de nossas terras
pagas com nosso suor e sangue.

Eu te cantei canções de amor
quando tu disseste
“Se não podemos vencê-los
vamos nos unir a eles”
e ficaste com a backra-missus ².

Eu te cantei canções de amor
quando tivemos nossas cabeças
quebradas
juntos
nas demonstrações pelo direito
de falar, de fazer greve
de politizar
de organizar.

Eu te cantei canções de amor
quando tu choraste no meu peito
e eu esfreguei ervas medicinais
nos teus ferimentos
ambos
esquecendo
que os meus próprios intestinos estavam rasgados
e rasgados de feridas.

Eu te cantei canções de amor
quando pegamos em armas
contra o inimigo
para resgatar nossa dignidade.

Eu te cantei canções de amor
mesmo quando tu renegaste
o nosso filho
concebido com a tua semente apressada
disparada no meu útero
num dia de folga.

Eu te cantei canções de amor
depois da guerra
quando trabalhamos juntos
para reconstruir um povo inteiro
e um país livre.

Eu te cantei canções de amor
quando tu me disseste
que eu já não era esperta o suficiente
para freqüentar os jantares de Estado
para os quais tu já eras convidado.

Eu continuo te cantando
canções de amor
mesmo quando canções de ódio
ameaçam sufocar até a minha alma.

Eu te canto canções de amor
homem-negro
para que tu possas entender
que eu te quero
forte
do meu lado
me cantando canções de amor também.

In: BARON, Dan. Alfabetização cultural. São Paulo: Alfarrábio, 2004. (Tradução do autor)

Notas:
¹ O latifundiário na Jamaica.
² A esposa do latifundiário.